Entrevista a duas investigadoras do CESAM sobre o novo ‘Tratado de alto mar’

Há três semanas atrás,dia 4 de março, em Nova Iorque, a Conferência Intergovernamental da ONU sobre Biodiversidade Marinha de Áreas Além da Jurisdição Nacional anunciou que os estados membroschegaram a um acordo para um tratado de proteção do alto mar. O novo tratado no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) aborda a conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas fora da jurisdição nacional (ABNJ). 

Este acordo, que está há 20 anos em discussão entre os estados membros, fornece um quadro legal para as regiões do oceano que estão fora das fronteiras nacionais. 

Considerado um momento histórico pela Presidente da Conferência, a Embaixadora Rena Lee, de Singapura, e pelo Secretário-Geral da ONU, António Guterres, este acordo tem estado nas manchetes de todos os jornais de grande tiragem. Seja jornais internacionais (como o TheGuardian) ou jornais portugueses (como o Público, o Diário de Notícias ou o Expresso). 

“Foi uma jornada muito longa para chegar a um tratado. Contamos com os 52 estados que compõem a HighAmbitionCoalition para liderar a tarefa de adotar, ratificar e identificar importantes áreas de alto mar a serem protegidas”, disse RebeccaHubbard no comunicado de imprensa emitido pela High Seas Alliance. 

Para melhor compreender o significado deste acordo, falámos com duas das nossas especialistas nesta área, Ana Hilário e Fátima Lopes Alves. 

CESAM: Em linhas gerais, o que é este tratado? Quais são seus objetivos? 

Ana Hilário: Este tratado está relacionado com a gestão e proteção da biodiversidade de mais de 60% do nosso planeta – a área fora da jurisdição nacional, que não está sujeita às leis ou controle de nenhuma nação individual. Esta área alberga uma grande diversidade de espécies marinhas, desde fitoplâncton a baleias azuis que não reconhecem fronteiras nacionais! Este novo tratado possibilita a criação de áreas marinhas protegidas fora da jurisdição nacional, o que é fundamental para atingir a meta estabelecida no ano passado: proteger 30% das terras e oceanos do planeta até 2030. 

Fátima Lopes Alves: O objetivo do novo tratado é estabelecer um quadro legal abrangente para a conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas fora da jurisdição nacional, incluindo o estabelecimento de áreas marinhas protegidas e a regulamentação de atividades como pesca, mineração, e bioprospecção. O tratado também procura aprimorar a cooperação internacional e a pesquisa científica para melhor entender e gerenciar os complexos e interconectados ecossistemas do oceano. 

As negociações para o novo texto do tratado estão em andamento desde 2018 e envolveram uma ampla gama de partes interessadas, incluindo governos, ONGs e o setor privado. 

CESAM: Qual a relevância social e ecológica deste tratado? 

Ana Hilário: Como a biodiversidade marinha enfrenta ameaças como a pesca em demasia, mudanças climáticas e atividades emergentes, como a mineração dos fundos marinhos, este novo tratado, quando ratificado, criará um quadro legal internacional focado na proteção de espécies ou ecossistemas oceânicos. O bem-estar humano depende, em todo o mundo, de um oceano saudável: o oceano é o maior atenuador das mudanças climáticas do planeta e bilhões de pessoas dependem diretamente do oceano para alimentação e emprego. O novo tratado protege a natureza, mas também as pessoas. 

Fátima Lopes Alves: É altamente relevante tanto em termos de impactos sociais como ecológicos. 

Do ponto de vista social, o tratado tem o potencial de abordar muitos dos desafios enfrentados pelo oceano, como a pesca excessiva, a poluição e a perda de biodiversidade. O oceano é um recurso vital para o bem-estar humano e suporta uma ampla gama de indústrias, incluindo pesca, turismo e navegação. Ao estabelecer uma estrutura legal abrangente para a conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha no ABNJ, o tratado pode ajudar a garantir a saúde e a resiliência do oceano a longo prazo, o que é essencial para a prosperidade contínua das comunidades costeiras e da economia global. 

Do ponto de vista ecológico, o tratado também é altamente relevante. O oceano é um dos ambientes de maior biodiversidade e ecologicamente mais complexo do planeta, sendo essencial para o funcionamento dos sistemas da Terra, como a regulação do clima global e o fornecimento de oxigénio por meio da fotossíntese. No entanto, o oceano também está ameaçado por atividades humanas, incluindo pesca, destruição de habitats, poluição e mudanças climáticas. Ao estabelecer regulamentos e proteções mais fortes para o oceano, o tratado pode ajudar a salvaguardar a biodiversidade marinha e garantir o funcionamento contínuo desses ecossistemas críticos. 

Biografia curta 

Ana Hilário é bióloga de profundidade no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro. Nos últimos 15 anos, Ana liderou vários projetos e participou em mais de 20 cruzeiros oceanográficos dedicados ao estudo dos ecossistemas do fundo do mar e tem uma vasta experiência em amostragem do fundo do mar. Atualmente, ela co-lidera o Challenger 150 (www.challenger150.world), um programa de 10 anos de ciência biológica do fundo do mar endossado pela Década da ONU de Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável. 

Fátima Lopes Alves é professora do Departamento de Ambiente e Ordenamento da Universidade de Aveiro e investigadora e vogal do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM). Com mais de 28 anos de experiência profissional, as suas principais áreas de especialização são Planeamento e Governação Costeira e Marinha, Ordenamento do Território de Áreas Protegidas e Avaliação Ambiental. 

Em setembro de 2018 integrou a equipa portuguesa nomeada pela FCT (Fundação Portuguesa para a Ciência e Tecnologia) para integrar a Missão Permanente de Portugal junto da ONU nas negociações deste tratado.