Os fenómenos migratórios das espécies selvagens são um pretexto para um permanente maravilhamento com o mundo natural. Milhões de aves ligam com as suas migrações regiões (e pessoas!) afastadas entre si. Mas as aves migratórias também se contam entre as mais ameaçadas globalmente. Só com um melhor conhecimento as poderemos conservar, bem como utilizá-las para a monitorização do ambiente global. Poucos estudos seguiram remotamente grande número de indivíduos de uma população, mas esta é uma condição para compreendermos a variabilidade intra-populacional e as suas causas e consequências, o que tem implicações profundas para a compreensão do fenómeno migratório. O nosso próprio estudo de longo-prazo com cagarras (uma espécie de ave marinha), e a sua demografia e ecologia espacial, é um dos mais detalhados que existem (mais de 320 migrações seguidas desde 2006; 20 artigos resultantes).
Este projeto assenta sobre as nossas investigações prévias. As cagarras são um excelente modelo devido às suas múltiplas áreas de invernada espalhadas pelo Atlântico e Índico. Previamente demonstrámos que tendem a ser fiéis às suas rotas, mas que uma considerável minoria muda de destino migratório cada ano, por vezes de forma dramática, levando a mesma ave para regiões apartadas de muitos milhares de quilómetros entre si. Alguma da variabilidade documentada está ligada ao sexo das aves, e outra aos efeitos ‘carry-over’, onde se exprimem os custos da reprodução. Muita variabilidade está contudo por explicar, e o presente projeto ambiciona fazê-lo de forma inédita na abrangência e no detalhe. O estudo de síndromes comportamentais têm conhecido grande desenvolvimento na etologia, mas até à data estes não têm sido ligados ao comportamento migratório, lacuna que pretendemos colmatar com o nosso estudo de cagarras. Investigaremos a existência de ‘personalidades’ em cagarras e a sua heritabilidade. Estudaremos também a evolução do comportamento migratório com a idade. Manipularemos também o estado de saúde das cagarras, desparasitando-as, para avaliar o efeito do estado de saúde no comportamento migratório. As escolhas realizadas pelos migradores podem ter um impacto importante na sua condição física e subsequente reprodução. A nossa extensa base de dados permitirá explorar se aves que invernam em áreas distintas têm probabilidades diferentes de regressarem atempadamente, emparelhar e reproduzir-se com sucesso. Compararemos indivíduos distintos num mesmo ano, bem como escolhas diferentes pelo menos indivíduo em anos distintos. Variáveis a medir incluem data de chegada da migração, a probabilidade de a reprodução ocorrer com sucesso, a condição corporal e a deterioração celular (encurtamento de telómeros). O uso de diferentes áreas de invernada também exporá as aves a níveis de contaminação ambiental diferenciados. Neste projeto mediremos a concentração de poluentes como o mercúrio e a exposição aos plásticos, através da análise de penas e de secreções glandulares. Isto permitirá usar um único organismo, a cagarra, para a monitorização ambiental à escala de todo um oceano. As mudanças climáticas já começaram a alterar a comportamento migratório de certas aves. Porém, existe pouca informação detalhada baseada em estudos de longo-prazo, e estudos prévios concentraram-se no efeito da temperatura. Aqui, relacionaremos a comportamento espacial das cagarras com alterações nos padrões do vento, e avaliaremos o impacto na demografia da espécie, realizando também previsões de tendências futuras. Entre as abordagens inovadoras do projeto, destacamos: (1) melhoramento experimental do estado de saúde das aves e posterior avaliação do impacto no comportamento espacial das mesmas; (2) estudo da ‘personalidade’ individual e relação com o comportamento migratório; (3) medição do impacto da migração na deterioração celular; (4) seguimento simultâneo de pares de progenitores e descendência (já adulta) para avaliar questões de heritabilidade; (5) previsão do impacto das mudanças dos ventos marinhos nas rotas migratórias e na demografia de um predador pelágico.
Este projeto contribuirá para o avanço do conhecimento global sobre migrações de aves, mas também representará um progresso significativo no conhecimento do espaço marinho sob jurisdição portuguesa (e do Atlântico em geral), nomeadamente sobre as suas condições ambientais e a incidência de poluentes. Investigadores nacionais reforçarão as suas competências em campos como a degradação celular ou monitorização de poluentes através das aves.