Artigo científico de investigador do CESAM seleccionado para a capa da revista “Ecology and Evolution”

Todos sabemos que pela altura da Páscoa as lojas enchem-se de ovos de chocolate que fazem as delícias de miúdos e graúdos. O que menos saberão é que o tradicional jogo de procura e o consumo de ovos (da Páscoa) no início da primavera se fica a dever em grande parte à existência dos primeiros ninhos do ano de uma ave limícola!

No norte da Europa, particularmente em Inglaterra, mas também na Escócia e Holanda, a recolha de ovos selvagens de aves limícolas na Páscoa chegou a ser de tal escala que deu origem a um acto do parlamento britânico para a protecção duma espécie (The Lapwing Act 1928), proibindo a venda de ovos de Vanellus vanellus (Abibe) entre 14 de Março e 11 de Agosto. Embora muitas aves migradoras tenham avançado a sua fenologia no que diz respeito às datas de postura das suas ninhadas e a recolha de ovos selvagens é cada vez menos frequente, muitas apresentam actualmente declínios que se ficam a dever a outros motivos. Por exemplo, ao não conseguirem acompanhar os avanços na fenologia dos recursos de que dependem, como os insectos que compõem a dieta de muitas destas aves migradoras.

De facto, as temperaturas cada vez mais quentes que se têm vindo a sentir em anos recentes parecem estar na origem de alterações várias na fenologia de muitas espécies, desde a data de floração das plantas, à eclosão de insectos e os movimentos migratórios de várias aves. Mas poderá a alteração do tempo de ocorrência destes eventos influenciar também processos demográficos e contribuir positiva ou negativamente para o crescimento populacional? Foi justamente esta a questão que uma equipa de investigadores internacionais, lideradas pelo Dr. José Alves (Dep. Biologia e CESAM – Universidade de Aveiro), se propôs desvendar. Para isso seleccionaram uma população de ave limícola que se reproduz no limite norte da sua área de distribuição, a Islândia, onde os efeitos do aquecimento global são mais notórios devido a um fenómeno denominado “amplificação Ártica”.

Os investigadores tiveram primeiro de procurar e encontrar ovos nos ninhos de milherango (Limosa limosa islandica) na Islândia durante vários anos, para assim determinar a variação na fenologia da postura dos ovos em função da temperatura. Este trabalho que teve início em 2001 (numa época particularmente fria na Islândia) começou a dar frutos dez anos mais tarde, em 2011 (nova época fria), tendo continuado até 2013 e cobrindo assim um período em que a temperatura média do ar flutuou entre 9 e 11 graus Celcius, durante a época de nidificação desta ave. Estes dados permitiram estabelecer uma relação entre a temperatura e as datas de postura: “quanto mais quente, mais cedo estas aves conseguem estabelecer as suas ninhadas”. Sendo uma espécie que esconde os seus ninhos na vegetação, esta ave tem de aguardar que as plantas cresçam após a neve e gelo que cobriram os solos durante o inverno Ártico se terem transformado em água. Em anos mais quentes o degelo dos solos e crescimento das plantas é mais rápido, permitindo a estas aves colocar os seus ovos em segurança mais cedo, escondendo-os de potenciais predadores.

Mas este foi apenas o primeiro passo neste estudo. Importava ainda perceber se estas respostas ao aquecimento das temperaturas locais poderia ter efeitos ao nível da população. Para isso, as crias desta espécie foram seguidas a cada dois dias através do radio-seguimento dos seus progenitores que as guardam de forma contínua, para se estabelecer quanto tempo necessitam estas ciras até se tornarem independentes, isto é, quando adquirem a capacidade de voo. Amostrando crias nascidas em anos nos quais as temperaturas do ar foram muito diferentes, foi possível comprovar que em anos mais quentes as crias adquirem independência cerca de 15 dias antes do que crias que nascem num ano mais frio (considerando a totalidade do período entre postura dos ovos e a obtenção da capacidade de voo). Através de um extenso programa de registos voluntários com base em anilhas de cor (colocadas nas aves mal nascem) e cobrindo toda a área de distribuição desta população (Islândia -Península Ibérica), foi possível fazer o seguimento destas crias (agora juvenis) até ao final a sua primeira migração. Isto permitiu comprovar que as crias nascidas mais cedo têm uma maior probabilidade de recrutar para a população. Assim, em anos quentes, a fenologia de reprodução desta ave avança e as crias nesses anos têm uma maior probabilidade de aumentar o número de efectivos desta população. Uma vez que as temperaturas médias na Islândia têm vindo a aumentado desde 1845 e primaveras quentes têm sido cada vez mais frequentes em décadas mais recentes, os investigadores puderam associar o crescimento populacional desta ave migradora e a sua colonização de novas áreas na Islândia e na sua distribuição durante a época não-reprodutora (Europa Ocidental), ao aquecimento que se tem vindo a sentir no seu país de origem. No início do Século XX esta população reproduzia-se apenas numa área restrita na costa Sudoeste da Islândia, e estima-se que compreendia 5000 indivíduos. O aumento da temperatura média desde então, permitiu aos indivíduos nestes locais originais produzir descendência em abundancia que foi colonizando praticamente toda a área costeira do país. Os seus efectivos aumentaram já para mais de 50.000 indivíduos, com áreas colonizadas primeiro a produzir cada vez mais aves à medida que as temperaturas nesses locais foram também aumentado.

Este trabalho vai para além dos padrões de descrição das respostas individuais e locais às alterações climáticas, fazendo a ligação entre estas e os potenciais efeitos ao nível da demografia e distribuição das espécies. Estes efeitos são extremamente importantes pois ajudam a melhor prever o que poderá acontecer às várias espécies dependendo da sua capacidade de resposta  alterações globais. Felizmente, para a população de milherango estudada o aquecimento global tem sido promotor da sua expansão, algo que seria expectável para uma população que se encontrava no limite norte da sua área de distribuição e potencialmente limitada pelas baixas temperaturas que ocorrem a estas latitudes. Contudo, este não é o caso para muitas outras espécies de aves migradoras que em muitos casos não conseguem avançar a sua fenologia ao mesmo ritmo do que a dos insectos dos quais se alimentam e alimentam as suas crias.

Devemos por isso promover os esforços presentes de redução das emissões de carbono, limitando assim o aquecimento global que já se faz sentir. Para além de ajudar a biodiversidade nas suas tentativas de resposta a estas alterações que já decorrem, iremos certamente evitar que muitos dos ovos de chocolate que tanto apreciamos não derretam nos seus esconderijos enquanto os procuramos em Páscoas cada vez mais calorosas.

O artigo original pode ser lido em acesso livre aqui.