A neurotoxicidade é um dos efeitos mais nocivos dos xenobióticos. Neste contexto, os compostos de mercúrio (Hg), incluindo o metilmercúrio (MeHg), têm estado na base duma grande preocupação, em particular no âmbito da saúde humana. É conhecida a perigosidade, persistência e ubiquidade do Hg em águas naturais. Contudo, a avaliação do seu potencial indutor de disfunções neuronais em animais aquáticos é uma matéria pouco explorada. Assim, o leitmotiv do projecto foi o reconhecimento de uma lacuna no conhecimento sobre a neurotoxicidade do Hg em peixes, e em particular na identificação dos seus mecanismos e repercussões no funcionamento do cérebro e possíveis alterações comportamentais. Os peixes são altamente susceptíveis à exposição ambiental a Hg, o que, conjugado com a sua relevância ecológica, reforça a pertinência deste estudo. Foram já detectados níveis elevados de Hg no cérebro de peixes, tendo este sido o órgão que melhor reflectiu os níveis ambientais [1]. A bem documentada neurotoxicidade em humanos e roedores [2], aliada às fortes indicações fornecidas no mesmo sentido pelos poucos estudos em peixes [3;4], aponta para a necessidade de um esforço científico nesta direcção.
Apesar do Hg ter sido implicado na neurodegeneração [5], os mecanismos subjacentes permanecem pouco claros, especialmente em peixes. Neste contexto, a investigação do envolvimento do stress oxidativo é particularmente relevante, dado que a neurotoxicidade do Hg em mamíferos foi associada à produção de espécies reactivas de oxigénio (ERO) [6]. Comparativamente com outros órgãos, o cérebro é particularmente vulnerável dado o seu potencial para a produção de ERO [7].
Assim, as principais questões a investigar são: (1) clarificar qual a espécie de Hg (inorgânico vs. MeHg) preferencialmente acumulada no cérebro e a contribuição das diferentes vias de absorção (água vs. dieta); (2) pesquisar o papel do stress oxidativo na neurotoxicidade do Hg; (3) investigar alterações morfo-funcionais no cérebro; (4) clarificar se níveis ambientalmente relevantes de Hg induzem alterações comportamentais. Serão ainda pesquisadas relações causa-efeito entre o ponto 1 e os pontos 2, 3, 4, assim como associações mecanísticas entre os pontos 2, 3 e 4. Adicionalmente, (5) a reversibilidade dos efeitos anteriores num período pós-exposição será avaliada em paralelo com a evolução dos níveis de Hg acumulados no cérebro.
Considerando as questões centrais do projecto, foi planeada uma abordagem integrada, envolvendo experiências laboratoriais com períodos de exposição e pós-exposição. Serão realizadas exposições via água (Hg inorgânico) e via alimento (inorgânico e MeHg) em separado e em combinação. Como estratégia inovadora no sentido de promover o conhecimento da toxicocinética e toxicodinâmica do Hg, e particularmente para clarificar como é que o Hg inorgânico atinge o cérebro, o metal disponibilizado via água será isotopicamente marcado (201HgCl). Subsequentemente, serão quantificados os níveis de Hg inorgânico, 201Hg e MeHg no sangue, áreas específicas do cérebro e espinal medula.
Será tida em consideração a influência da temperatura (simulando estações contrastantes, i.e. inverno/verão) na absorção e destino das diferentes formas do metal no corpo do peixe, assim como nas respostas bioquímicas e alterações morfo-funcionais do cérebro.
Entre os parâmetros a determinar no cérebro, incluem-se a actividade da acetilcolinestrase, assim como uma bateria de parâmetros de stress oxidativo (antioxidantes enzimáticos e não enzimáticos, capacidade antioxidante total e dano oxidativo em lípidos e proteínas). Na avaliação das alterações morfo-funcionais serão usados parâmetros histopatológicos e histoquímicos, a expressão de receptores de neurotransmissores, assim como níveis de apoptose e neurogénese do sistema límbico. Tendo em conta que os distúrbios comportamentais são uma manifestação integrada de alterações bioquímicas, estruturais e funcionais, os peixes serão monitorizados quanto à actividade locomotora e alimentar.
O teleósteo Diplodus sargus será adoptado como organismo-teste por cumprir a maioria dos requisitos de uma espécie bioindicadora.
A equipa de investigação tem larga experiência em toxicidade de contaminantes em peixes, incluindo Hg [1;9;10], assim como na química ambiental de Hg [8] e neurociências [11;12]. Adicionalmente, tem um profundo conhecimento dos teleósteos como modelo experimental [1;9;13]. O projecto constitui uma investigação inovadora que contribuirá para a elucidação da neurotoxicidade de Hg em peixes. A estratégia proposta é completamente nova no contexto da ecotoxicologia, dado o seu carácter integrador, consubstanciado pelo largo espectro de efeitos a avaliar. Por outro lado, a aplicação de tecnologia sofisticada na área das neurociências é também um aspecto original. Os resultados esperados permitirão fornecer recomendações de grande utilidade para as entidades decisoras na (re)formulação de regulamentação de protecção ambiental.